Com muita facilidade, julgamos os tempos passados. Fazemo-lo com pressupostos hodiernos, achando muitas vezes que critérios éticos atuais que julgamos superiores são suficientes para condenar ações e factos históricos. Assistimos mesmo à destruição de obras de arte, de estatuária e monumentos, em nome de uma moralidade que quer deitar por terra e subjugar o tempo que não volta. Algo que incomoda uma geração incontrolável que tudo deseja controlar. Aqueles que proclamavam ser proibido proibir, proíbem o livre pensamento contrário ao politicamente correto atual. Mesmo o passado. Múltiplas estratégias passam por reescrever a história, relegá-la ao esquecimento, destruir lembranças e apagar testemunhos. Não damos direito de resposta aos antigos protagonistas, e ainda que o fizéssemos talvez os seus argumentos não fossem compreensíveis à luz fosca e pouco definida dos novos tempos. Na verdade, é muito fácil acusar e condenar homens e mulheres sem defesa, que já não estão entre nós, utilizando critérios humanos presentes, por isso mesmo falíveis e transitórios. Amanhã, estaremos nós no banco dos réus.
Raymond Aron lembra que o movimento de um exército parecer-nos-á desorganizado, absurdo, se ignorarmos a organização militar, os seus princípios e propósitos. Da mesma forma, um historiador precisa compreender os atos passados, perscrutar as consciências, tarefa extremamente difícil. Deve procurar conhecer se determinado ato estava enquadrado em toda uma época, pertencia ao capricho ou loucura de um individuo ou se era fruto do senso comum. Discernir se os factos devem ser imputados a determinado grupo, se é responsabilidade individual, de muitos ou alguns. Sem esquecer a obediência, por vezes irrestrita, dos sujeitos.[1] Bastaria recordar o julgamento de Eichmann, observado por Hannah Arendt, no qual a teorista política notava que a participação do Nazi alemão no extermínio de tantos judeus era fruto de uma obediência militar irrestrita, onde o livre arbítrio era afetado pela manipulação ideológica do personagem, desde tenra idade.[2] Algo que não o ilibava propriamente, mas que trazia uma outra realidade mais abrangente e assustadora aos próprios factos, que não se cingiam a meros detalhes e pormenores, mas que implicavam totalitarismos complexos, perigosos, mas também atuais. Muito podemos aprender com a história, em vez de apagá-la, seletivamente. Era a tese de Arendt, contemporânea de Aron, para que erros do passado não se repetissem. Ora, a reescrita e a amnésia histórica prejudicam este exercício.
Segundo Aron, os valores e a moral da época e do individuo não devem ser estranhos ao estudioso do passado. Talvez seja impossível perscrutarmos as consciências, mas a história não pode ficar simplesmente à mercê do capricho dos historiadores. Cada intérprete do passado compõe uma imagem. Será muito difícil para ele conhecer a plena verdade e o interior dos homens, que a Deus pertence. Constitui, portanto, um verdadeiro e nobre desafio escrever sobre os factos e os personagens do passado! O que não se pode é secundar a atitude de Comte que quis interpretar e condenar todas as verdades de acordo com aquela espécie de “religião” do progresso criada por ele. Tornam-se óculos que deformam tudo o que veem e leem.[3] Aron é mesmo contrário a uma visão cientificista e positivista da história. Cada vez que uma ideologia dominante e dominadora quer julgar os factos do passado, acaba por fazê-lo subjugada ao pensamento exclusivo e excludente que a alimenta e mantém. Esta solução empobrece a História numa espécie de “literatura revisionista”,[4] como lhe chama Raymond Aron.
Um problema que este notava, e que talvez permaneça: A história escrita hoje “raramente é imparcial, porque os historiadores que a escrevem poucas vezes têm o desejo de ser neutros”.[5] A filosofia é importante, sim, na medida em que ela ajuda a compreender os tempos e os homens, mas o historiador deve conhecer o pensamento dominante da época, não ser condicionado pelo pensamento dominador contemporâneo.
[1] Cf. Aron, Raymond. Introduction à la philosophie de l’Histoire. [S.l.] : Gallimard, 1981.
[2] Ver artigo https://filosofiamoralepolitica.com/2021/05/18/a-banalidade-do-mal/
[3] Cf. Aron, Raymond. Op. Cit.
[4] Ibidem, p. 553.
[5] Ibidem, p. 580.