A Banalidade do Mal…

A Banalidade do Mal é uma importante linha de pensamento de Hannah Arendt, fruto da forte experiência da filósofa política em Jerusalém, durante o julgamento e testemunhos de Eichmann, Nazi responsável pelo embarque em massa de judeus para os campos de extermínio. Solicitada a cobrir o acontecimento para um órgão de imprensa, que terminou com a condenação do soldado do III Reich à morte, a filósofa política escreveria um polémico artigo, fruto de uma interpretação própria e original, lida e relida, criticada e aplaudida, talvez ainda mais compreendida nos nossos dias, longe do calor dos acontecimentos e das massas sedentas de justiça e de sangue, desprovidas, talvez por isso mesmo, de uma capacidade mais profunda de análise sobre as motivações e o modo de agir daquele homem. Arendt não colocava nele uma culpa plena nem o responsabilizava propriamente, pois notava nas suas palavras em tribunal que era um operacional que havia cumprido cegamente as ordens dadas por Hitler, atuando cegamente diante do contexto e do fanatismo implantado pelo nacional-socialismo alemão.  Mais do que definir políticas, Eichmann era um homem prático que executava fria e eficazmente as ordens dadas. Diante do regime totalitário, submetia-se cegamente, perdendo até a capacidade de distinguir o bem do mal. O regime havia apagado esta capacidade de análise ética, banalizando o mal em tantos dos seus mais fiéis seguidores.

A doutrinação de Eichmann, que lia e estudava os escritos dos ideólogos nazis, desde a sua juventude, e que participou em milícias e grupos de jovens ligados à extrema-direita, levou-o a servir com paixão o exército nazi, e ascender a tenente-coronel com elevada capacidade de trabalho prático, frieza e fidelidade na execução daquilo que lhe era pedido. Um homem cuja capacidade foi utilizada para o mal. Entretanto, as suas decisões careciam da plena liberdade. Estava preso à obediência militar, a uma obediência cega ao regime, e a uma obediência condicionada pela incapacidade ética da objeção de consciência relativamente àquilo que lhe era exigido. Arendt, ela mesma uma judia, que havia sofrido as consequências dessa perseguição na sua juventude, e chegou mesmo a estar presa, obrigada ao exílio e a refugiar-se nos Estados Unidos, onde viveu e lecionou, não se deixou levar pelo calor dos acontecimentos afetos à condenação de Eichmann. Notou nele a passividade de um burocrata, um homem comum, incapaz de refletir no que fazia. Obviamente que essas reflexões, publicadas em vários artigos para o The New Yorker e compilados em 1963 com o título “Eichmann em Jerusalém”, causaram grande consternação, ostracismo e oposição, tanto na comunidade judaica, quanto na comunidade docente, sobretudo no campo das Ciências Sociais. A polémica foi tal que ela chegou a perder amizades e causar profundas divisões na Universidade onde lecionava, apesar de contar globalmente com a aprovação e apoio dos alunos que enchiam as suas salas de aula. Na verdade, Arendt não se ocupou em facilmente condenar um vilão, enforcando com ele todo um regime e atrocidades cometidas, nem se preocupava com a simples negação da liberdade, característica dos totalitarismos, mas teorizou sobre a total privação desta, nos seus múltiplos aspetos, capaz de colocar em contradição nos homens a capacidade de uma escolha ética e até o bom senso, a liberdade de escolher o bem e evitar o mal. A radical negação da liberdade que tolda até mesmo a razão.[1]

Arendt não considerou Eichmann a encarnação do mal, como muitos queriam ver, mas um homem como tantos outros, entretanto, com a capacidade de fazer um grande mal que qualquer pessoa comum, que perdeu o senso moral e a capacidade de refletir, seria capaz também. Assim era para tantos homens e mulheres da Alemanha Nazi, assim pode ser nos nossos dias. Para a Filósofa Política, essa é a banalidade do mal, capaz de estar em tantos lugares, e que não sendo propriamente um absoluto, pode atingir o mais comum dos homens. A filósofa política tinha realizado a sua tese de doutoramento sobre Agostinho, e provavelmente estudou o dilema sobre o mal e o livre arbítrio no Santo de Hipona. Aplicava agora alguns princípios semelhantes, a partir da experiência no julgamento de Eichmann, ao campo Sociológico e da História, particularmente, da Filosofia Moral e Política.

Dr. Manuel Victorino

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Uma Reportagem sobre a Banalidade do Mal. 3ed. Coimbra: Tenacitas, 2013. 396p.

Sugiro também o filme, legendado em português, em: https://www.youtube.com/watch?v=wwbH7HQ27gs


[1] Quanto a esta questão, ver o Capítulo V dedicado à Liberdade em Arendt no excelente artigo do Cap. V de Dana Richard Villa (ed.). Cambridge Companion to Hannah Arendt. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press,  2002. Especialmente p. 119-121.

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