
O Estado é laico, mas muitas vezes, ele mesmo tem dificuldade em perceber o que isso significa, e aqueles que compõem o poder civil extrapolam as suas competências em nome do dito cujo, transformando o conceito, que é positivo, num verdadeiro laicismo persecutório e discriminatório da fé dos povos. A dificuldade em perceber o que é o Estado laico começa por um bom número de jornalistas, incapazes de fazer um comentário acertado em matérias religiosas, que eles não dominam minimamente e às quais apresentam regularmente certa ojeriza. Tantas crónicas e artigos mal escritos, sem sequer uma terminologia adequada, fruto da ignorância. Este site, por exemplo, é de filosofia moral e política. Ora, eu não me arrisco a falar aqui de culinária, pois faltar-me-iam os termos apropriados, o conhecimento teórico e prático, e não poderia senão cingir-me ao campo do amadorismo, ainda que cozinhe esporadicamente. É o mesmo amadorismo que encontramos naqueles que escrevem artigos que entram em questões de religião, e que são tão pródigos em falar do tal Estado laico, mas que pouco sabem de um, ou de outro. E esta pandemia de estultice grave espalha-se hoje por muitos políticos, que representando o povo, o fazem de modo asséptico em matéria religiosa, como se os povos fossem desprovidos das suas crenças. Homens ateus, sempre houve. Povos ateus, nunca existiram. Está por ser descoberta uma civilização sem os seus deuses, práticas devocionais ou religiosas. O Estado laico não pode ser negligente nestas matérias, como não lhe compete ser confessional de uma religião específica ou do ateísmo militante. O Estado é laico, para ser de todos, porque abriga uma sociedade plural, composta de todas as crenças e descrenças, religiões e irreligiões. Um Estado ateu não é simplesmente o Estado laico, porque não lhe compete negar Deus, nem tomar o partido dos ateus. Assim, representaria uma parcela minúscula dos homens e mulheres que o formam.
A sociedade temporal não pode ser oposta à sociedade espiritual, mas composta. Na medida em que até mesmo os padres e as freiras pertencem a ambas. Não são alienígenas nem alienados, vivem no tempo, participam na sociedade civil, que muito depende da sua caridade e espiritualidade, e têm direito ao sufrágio. Pagam os seus impostos. Não estão isentos de IVA… Se eles não são ignorados em matéria contributiva ou democrática,[1] muito menos podem ser em matéria de fé. Mesmo relativamente aos fiéis leigos, o Estado laico não pode simplesmente ir aos bolsos e ignorar os corações dos homens e mulheres crentes. Seria despótico e injusto. Por isso deve proporcionar a todos a liberdade de culto, a sadia convivência entre as religiões, o apoio e reconhecimento da iniciativa privada e direito de associação, sobretudo em matéria de solidariedade de inspiração religiosa, que complementa e até substitui tantas vezes a ação social do poder público, incapaz de ser omnipotente e omnipresente. O poder temporal deve, isso sim, ser vigilante relativamente a seitas e extremismos, pois um Estado laico não se pode omitir do zelo pelo bem-estar e segurança dos seus cidadãos. A opinião de que o Estado é laico e não deve interferir em matéria religiosa já levou também ao crescimento de muitas seitas, e é uma negligência. São os extremos de quem não compreendeu o que é o Estado laico, quando se torna por um lado confessional do ateísmo, ou quando se protege à sombra do termo para assobiar para o lado, deixando as coisas acontecerem e os extremismos crescerem.
O Estado é laico, mas os homens são na sua maioria religiosos. Mesmo os políticos não podem ser coagidos a abandonar as suas crenças em nome da representação e imparcialidade, como não teriam de abandonar as esposas por respeito à diversidade sexual, para só assim poderem representar a comunidade homossexual. Eles podem ser casados que não deixam de representar os solteiros. Como podem ser crentes e não ferir o Estado laico, na medida em que não tomam publicamente, enquanto representantes e líderes de uma nação, qualquer atitude discriminatória ou exclusivista relativamente a qualquer credo. Ainda recentemente tivemos o exemplo do profundo desrespeito pelos crentes e total incompreensão do Estado laico por parte de um membro da Assembleia da Républica, deputada do Bloco de Esquerda, que publicava nas redes sociais uma fotografia da imagem do Cristo Rei escondida na bruma, regozijando-se pela ausência do Redentor, em nome do tal Estado Laico, dizendo ser melhor assim, sem a visão daquela imagem. Típica aversão a tudo o que não representa o “deus Marx”, o ópio das massas, e os seus “livros sagrados” que guiam e devotam consciências. Além de destilar ódio, próprio aliás de partidos encostados a extremos relativamente às diferenças, esta opinião representa o ateísmo militante, o laicismo, e foi para representar o fim destes tempos, de uma Républica discriminatória que perseguiu sacerdotes, expulsou ordens religiosas e apropriou-se de conventos, que a imponente imagem foi construída. E é por isso que a sua omissão acarreta perigosos saudosismos anticlericais. Inspirada na Quas primas, de Pio XI, que instituiu a Solenidade de Cristo Rei, em oposição ao laicismo radical e militante, tornou-se um símbolo da cidade maravilhosa (também ela laica) do Rio de Janeiro, e coroa a colina em Almada que recebeu um Santuário em seu nome, e que lembra aos políticos que eles um dia terão de prestar contas a alguém. Que não são omnipotentes nem deuses… mas representantes também daqueles que se prostram diante do Rei e se inclinam diante das potestades, que adoram um só Senhor e prezam os demais senhores, que se ajoelham diante de Deus e colocam o boletim nas urnas. Se a imagem do Cristo incomoda alguns ateus, o comentário da deputada Mariana Mortágua ofendeu a maior parte dos crentes. Curiosamente, não se ouviu ninguém dizer que esta opinião feriu o Estado laico, que não pode ser confessional do ateísmo e da irreligião, mas da pluralidade e respeito por todos. É sinal que ninguém compreendeu bem o que é o Estado laico…
Dr. Manuel Victorino
[1] Não são ignorados, mas podem ser privilegiados. Mas isso, hoje, não é exclusividade das associações e confissões religiosas, extendendo-se aos Institutos Particulares de Solidariedade Social sem inspiração em qualquer credo, ONGs, sindicatos, associações políticas, culturais, misericórdias, etc. etc. etc…