
Já não estranhamos, nos nossos dias, os programas televisivos e os artigos jornalísticos que funcionam à semelhança de polígrafos, que analisam a verdade ou a falsidade relativa a muitos posts na internet, nas redes sociais, e que analisam também, com pertinente frequência, muitas das afirmações políticas. Já ninguém estranha ou considera uma exceção à regra tantos ministros e governantes serem apanhados a relativizar ou fugir à verdade. Sem rodeios ou vergonhas, extrapolam os normais atabalhoamentos de quem se vê repentinamente rodeado de microfones, e as meras precipitações ou ignorância relativamente a números e casos que parecem (des)conhecer. A mentira é antes pensada, premeditada, visa desdourar adversários políticos e alicerçar inverdades, reforçar ideologias e baralhar rivais, mostrar eloquência e cair na verborreia. Não se trata de um fenómeno recente. Sócrates sofreu com os sofistas, Jesus foi difamado pelos Sumos Sacerdotes, doutores da lei, fariseus e saduceus, os Padres da Igreja defenderam a doutrina e a honra diante dos heresiarcas… a História, mesmo a antiga, está cheia de homens que usaram a mentira para alcançar os seus interesses. Moralmente, o falso testemunho causou desde sempre aversão, constituía a exceção, e nunca a regra de uma classe dirigente. E nunca faltaram profetas e paladinos da verdade para acusar as injustiças e as inverdades. Entretanto, aquela que devia ser a exceção, tornou-se uma regra a partir de Maquiavel, que lançou muitas das bases do atual sistema político, que normalizou a mentira no sistema governativo ao propor um Príncipe tirano, absoluto, cujos fins acabam por justificar ou absolver os meios.[1] Daí a célebre frase a ele atribuída: “os fins justificam os meios”.
Maquiavel lançou os fundamentos de um sistema desleal que outros levariam mais longe. Hegel, por exemplo, aproveitou este sofisma para ratificar toda e qualquer ação que obtivesse sucesso. Para ele, o triunfo validaria os meios empregues, fossem eles mais ou menos proporcionais, legítimos ou não, tal como as vitórias de Napoleão normalizariam e branqueariam os excessos da guerra e das invasões.[2] Os iluministas franceses, sobretudo os Enciclopedistas, para reescrever a História de um ponto de vista laicista, não se limitaram a ignorar o papel do cristianismo na edificação da civilização ocidental. Acabariam por mentir e difamá-lo, de modo a que perdesse a afeição dos povos e as novas doutrinas pudessem ser acreditadas e vividas sem obstáculos. Para isso, Voltaire dizia que era “preciso mentir como um demónio, nem timidamente, nem por um tempo, mas fortemente e sempre”,[3] a fim de esmagar a “infame”,[4] como ele chegou a apelidar a Igreja Católica. “Menti! Menti, que alguma coisa ficará”, frase atribuída originariamente a Voltaire, provavelmente apócrifa, empregue na prática pelo responsável da propaganda política Nazi, Joseph Goebbels, de modo a que as mentiras matraqueadas inúmeras vezes, passassem a ser consideradas como válidas e verdadeiras. Mentiras repetidas, mentiras propagadas, mentiras acreditadas. Os fins, para os regimes totalitários, justificaram tantos meios ilícitos e imorais. O problema foi que a mentira veio para ficar, e contaminou os regimes democráticos. A política recente inspirou-se de certa forma na ética utilitarista que propôs a possibilidade de mentir ou de proferir falsas promessas se com isso aumentasse a felicidade pública.[5] E recebeu toda uma carga hereditária baseada nos fins que justificam todos e quaisquer meios. Os fins para aquela ideologia, claro. Para isso, as mentiras (e as falsas promessas), constituem alguns dos meios.
Já lá vai o tempo da proposta moral tomista, cristã, que dizia ser legítima apenas a causa íntegra. Os fins têm de ser bons, os meios igualmente. O mal está na corrupção de qualquer uma das partes.[6] A ética cristã parecia ser a mais preparada para o governo dos povos, com a sua caridade e bondade, sobretudo a ideia de que os líderes das nações não são omnipotentes, não são deuses, pois há um só Deus por quem um dia serão julgados. E os seus maus atos acarretam consequências, inclusive presentes, terrenas, pois na conceção agostiniana, presente na obra De Civitate Dei, as nações sofrem as consequências das suas más opções e dos seus pecados. São Tomás de Aquino considerava a necessidade de os governantes serem avaliados e pesados pelos povos, que têm direito à oposição e à resistência, a fim de derrubar o tirano e pôr fim à tirania, sobretudo quando o regente vivesse de acordo com os seus interesses, e não de acordo com o bem comum, degenerando assim num regime injusto e perverso.[7] Políticos pouco tementes a Deus e que se escudam na escolha de maiorias, nas presentes democracias, aproveitam-se do poder que lhes é dado momentaneamente, mentem e roubam com enorme facilidade, aproveitando um cargo efémero e volátil. Não são todos, e se é uma boa parte, infelizmente, essa classe tão desacreditada pela opinião pública, e os casos que se avolumam na justiça, parece corroborar na tese de que é um número não pequeno nem insignificante. Que vive das ilusões e das mentiras, até que um outro, com maior capacidade para mentir, o venha substituir. O sufrágio vai ao encontro do maior mentiroso e de promessas ilusórias, chamariz para o povo que nelas acredita. E a ilusão criada acaba com o prémio do voto das maiorias, e assim vão as democracias…
Dr. Manuel Victorino
[1] MAQUIAVEL. O príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Ediouro, 2005.
[2] Cf. HOTTOIS, Gilbert. De la Renaissance à la Postmodernité: Une histoire de la philosophie moderne et contemporaine. 3a. ed. Bruxelles: De Boeck Supérieur, 2005.
[3] “Il faut mentir comme un diable, non pas timidement, non pas pour un temps, mais hardiment et toujours “. (Lettre 666, 21 octobre 1736. In : VOLTAIRE. Ouvres complètes. Garnier, Vol. 34. p. 153. Tradução minha).
[4] “Écrasez l’infâme”. Carta ao enciclopedista D’Alembert de Novembro de 1768. Apud LEJEUNE, Anthony. Dictionary of foreign quotations. Stacey, 1998. p. 111.
[5] Cf. A tradição utilitarista: Bentham, Mill e Sidgwick. In: RENAUT, Alan.História da Filosofia Política: As críticas da modernidade política. Lisboa: Piaget, p. 43-51.
[6] “Bonum ex integra causa, malum ex quocunque defectu…” (S.Th. I-II, q.18, a.4).
[7] Sobretudo no De Regno, C. 2 e 6.