
Hannah Arendt, alemã de origem judia, escritora de uma tese sobre o amor em Santo Agostinho, foi uma filósofa e teorista política, polémica e perspicaz, ora conservadora em certas propostas, ora bastante progressista noutras, que deixou um vasto legado relativamente à análise dos totalitarismos e a forma como estes souberam reinventar-se no pós-guerra. Ela mesma sofreu as consequências da perseguição Nazi, que a obrigaram a exilar-se, e sofreu as dores de um povo que definhava nos campos de concentração e extinguia-se nas câmaras de gás. Entretanto, Arendt desenvolveu o problema dos totalitarismos sem se restringir a direitas ou esquerdas políticas, como é hábito de muitas ideologias, que atiram umas às outras, de extremo a extremo, as acusações das atrocidades e do sangue derramado esquecendo-se ou deturpando a sua própria história. Qualquer ideologia política totalitária é má, péssima, independentemente da cor ou posição política. Arendt não guinou para nenhum dos lados por aversão ao outro, mas teve o discernimento para analisar o fenómeno de um ponto de vista global e desafiante. Arendt é provavelmente “uma das mais originais e influentes pensadoras políticas do século XX”.[1] Doutrina estudada por tantos sociólogos e filósofos políticos de hoje, mas a julgar pelo fenómeno e dimensão dos novos totalitarismos, pouco ou nada aplicada e muito contrariada.
Para Arendt, os totalitarismos pretendem ocupar todos os espaços, sejam eles económicos, políticos ou morais, de modo a que determinada ideologia triunfe, se necessário com recurso a meios repressivos e violentos, aspirando a um domínio não só local como global. Uma ideologia que se quer impor sobre tudo o mais, redutora, que julga e define todas as coisas conforme a sua bitola. E que para tal usa inescrupulosamente ciências sociais e meios técnico científicos, olhando para os fins sem se importar com os meios, ainda que para tal sejam atropelados os mais básicos direitos humanos. Os campos de concentração Nazis eram para a filósofa um exemplo gritante dessa espécie de inferno onde se usa o nome da sociologia e da ciência para experiências sociais e extermínio de tantos inocentes.[2] Um verdadeiro laboratório experimental social e científico para o regime totalitário. E que não se esgota aí, mas prolonga-se nos Kolkhozes e Sovkhozes soviéticos, nos campos reeducativos e de extermínio de Mao Tsé-Tung ou de Pol Pot. E que permanecem até aos nossos dias em tantas prisões políticas de regimes totalitários despóticos. É, segundo Hannah Arendt, a instituição central do poder totalitário organizado, com capacidade para levar ao desaparecimento de inimigos e reeducar cidadãos.[3] Ora, as ciências, mesmo as sociais, não justificam tudo, não podem atropelar direitos, fazer lavagens cerebrais e suprimir vidas humanas em nome de superiores interesses de um qualquer regime ou ideologia. E se diante da comunidade internacional parecem ser poucos os que continuam a usar os meios mais draconianos, para não escandalizar e levantar a oposição e a condenação das nações, as ciências sociais como meio de propaganda continuam a ser aplicadas, foram desenvolvidas por engenheiros sociais, e têm uma força enorme na proliferação das ideologias.
Conforme Arendt, “as massas são ganhas através da propaganda”.[4] A teorista política tem ainda o cuidado de especificar que a propaganda poderia chamar-se hoje “doutrinação”. Tal como a ciência que prometia noutros tempos ser a solução para todos os problemas, as ciências sociais pretendem, manipuladas por novas formas ideológicas, ser sinal de salvação emancipando os homens e mulheres do nosso tempo. É a propaganda involucrada de doutrinação e mascarada de educação. Arendt denuncia ainda a dessacralização do homem, pois quando ele é naturalizado, como qualquer outra natureza ou criatura, facilmente torna-se passível de processos. À semelhança da ciência que processa a matéria, as ciências sociais processam as mentes e estariam para as ideologias como a Ciência para a Física.[5] Para a autora, o que deve servir de fasquia para aqueles que estão comprometidos com a política, são os acontecimentos, do passado e do presente, a História, como confiável pedagoga, e não qualquer “gadget” das ciências sociais.[6] Esta é uma crítica pertinente que ela faz aos cientistas sociais, e a sua relativa preocupação com a História e aquilo que ela pode ensinar, para não se repetirem os mesmos erros totalitários do passado.[7] Eles teorizam muito, apaixonam-se por utopias, e pouco se preocupam com as desgraças que estas causaram na história recente. Contrariando esta posição, Hannah Arendt considera que a escrita dela reflete sobre aquilo que andamos a fazer, a condição humana a partir das suas experiências e mais recentes receios.[8] Um prisma importante, também para os dias de hoje.
Dr. Manuel Victorino
[1] VILLA, Dana Richard (ed). Cambridge Companion to Hannah Arendt. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Introduction, p. 1.
[2] Interessante o resumo de onde foram extraídas algumas das ideias da primeira parte deste parágrafo em Hannah Arendt’s Indictment of Social Science, primeiro capítulo da obra de BAHER, Peter. Hannah Arendt: Totalitarianism, and the Social Sciences. Stanford (California): Stanford University Press, 2010. p. 10-35
[3] Ibidem, p. 21-22.
[4] ARENDT, Hannah. The Origins of Totalitarism. 17 ed. New York: Meridian Books, 1962. p. 341.
[5] Idem. ARENDT, Hannah. Between past and future: Six exercises in political thought. New York: The Viking Press, 1961. p. 59.
[6] “Events, past and present,—not social forces and historical trends, nor questionnaires and motivation research, nor any other gadgets in the arsenal of the social sciences—are the true, the only reliable teachers of political scientists, as they are the most trustworthy source of information for those engaged in politics” (ARENDT, Hannah. The Origins of Totalitarism. 17 ed. New York: Meridian Books, 1962. p. 482.
[7] Esta mesma ideia encontra-se em ARENDT. Between past and future: Six exercises in political thought. New York: The Viking Press, 1961.
[8] Cf. ARENDT, Hannah. The human Condition. 2. ed. Chicago: Chicago Press, 1998.